Travessia – por Márcio Grings

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Rasguei a culpa em dezenas de pedaços. Afoguei um pesadelo na fronha do travesseiro. Pulverizei o meu senso humor na íris de um gato. Filmei uma cena inédita com memória fotográfica. Dificultei a passagem da peste negra antes da contaminação fixar residência. Desatei a venda dos olhos da mentira & agora ela vê.

E se agora ela enxerga, as noites ficaram iluminadas de verdades. Toda vez quando viro a cabeça para cima, um foguete cruza o céu. Finquei pé na convicção de que um todo não precisa de quase nada.  Antevejo a sinalização antes dos faróis iluminarem as placas corroídas pela ação do tempo. Um monstro engoliu a rodovia, só então peguei a estrada vicinal rumo aos dias que virão. Ouço o vento e desligo o resto do mundo ante ao ranger das árvores se curvando.

Todas as dores vão sendo esmagadas pelos fatos que concitam impiedosamente contra o que passou voando. E se cruzou a linha, só me resta calçar um novo par de botinas prestes a ser amaciadas. Aponto o meu arco & estico a corda até aonde dá, sempre buscando entender os meus limites & ciladas. O alvo foi alvejado & algo cintila em la ruta.

E se brilha alguma luz, alguém precisa pensar em manutenção desse lume. Nunca mais eu vou deixar as sombras embalsamarem a luminosidade & seus fachos coloridos. A travessia arrancou pedaços de mim, mas cá estou, vivo!

E se estou vivo, penso no resultado das ações como abalos sísmicos com réplicas & tréplicas propulsoras de tsunamis & vendavais. Se derruba, alguém levanta. Se levanta, é porque ainda respira.

Ardência no espírito é algo se renovando. Trocando as vestes para o baile de gala. A orquestra já está afinando os instrumentos. O cantor aquece a voz. O microfone está ligado.

Que o concerto tenha o seu início. Só agora eu percebo… Tudo está pronto.